A cidade, contudo, não conta o seu passado, mas contém-nos como as linhas de uma mão, traçadas nas esquinas das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos paus das bandeiras, cada segmento marcado por sua vez com riscos, amolgadelas e espiras.
Ítalo Calvino
O Porto vai colocar numa barca todas as suas emoções e memórias e guardá-las, durante cem anos, nas águas do rio Douro. Postais, fotografias, músicas, gravações, discos, brinquedos, poemas,livros, peças de roupa, desenhos, pinturas, jóias de família, notícias, recortes de jornal, testamentos, registos de propriedade, ou até o próprio coração. A lista é interminável e só depende da imaginação e da vontade dos portuenses. Daqui a cem anos, haverá um qualquer mergulhador ou uma equipa de mergulhadores que resgatarão essas memórias para a posteridade.
José Carretas, Encenador
Como Robert Filliou que metia “ inocência” e “imaginação” em neons numa caixa de ferramentas em 1971 – Tool-Box nº1 -, um mau viagem é o momento ideal para “encaixotar” as coisas mais preciosas, o mais horrível para transformar os nossos fantasmas num saber alegre. O Maus guia propõe nesta parte « Exorcismo n°1 » fazer Cápsulas do Tempo.
Cápsula de tempo
Se o Porto estivesse à beira de desaparecer qual o objeto simbólico que escolherias para guardar numa cápsula do tempo?
O Objeto seria “Um Cuspidor” , não sei qual o nome original, mas penso ser “Escarradeira”. Quando vim morar para o Porto uma das coisas que mais me suscitou curiosidade foi o porquê de ainda existirem estes objetos em alguns cafés antigos do Porto, como a Brasileira. O Objeto em si era bem bonito, perguntei qual era a função e quando dizem “para escarrar” confesso que fiquei pasmada. Esta da Brasileira era da Vista Alegre, não fazia ideia que existiam… Cedo percebi que, infelizmente, os Portuenses, de todas as idades, têm o péssimo hábito de cuspir para o chão…talvez por isso este objeto já em desuso ainda persista em alguns locais.
Não escolhia nenhum, acho que a cidade se devia desligar do passado. Deviam deixar o Porto morrer definitivamente e construir outra cidade por cima. Não sou contra a memória, mas neste caso ela tomou dimensões perniciosas. A memória não é um sítio onde se possa viver. O Porto até ao princípio do século XX foi uma cidade que sempre olhou para o futuro, para fora de si. Agora vive preso nessa memória, olhando para trás e para si, obviamente, não se reconhecendo. Obrigado a escolher um objeto escolheria o míldio, o bolor que cresce nas paredes e tetos de quase todas as casas nesta cidade. Escolhia-o para que devorasse e dissolvesse todos os outros objectos, coisas e ideias que estivessem dentro dessa cápsula, quebrando definitivamente a relação esquizofrénica que esta cidade tem com a parvoíce que é a ideia de identidade.
Candeeiro elétrico. Uma pequena luz. Luz indireta. Lanterna, de vidro.
Escolhia uma pedra de granito, para deixar o lado enigmático que sinto em relação à minha cidade, uma pedra caída do céu cheia de matéria.
O martelo. Um martelo verdadeiro.
A canção Porto Sentido, do Rui Veloso [[Quem vem e atravessa o rio
Junto à serra do Pilar
vê um velho casario
que se estende ate ao mar
Quem te vê ao vir da ponte
és cascata, são-joanina
dirigida sobre um monte
no meio da neblina.
Por ruelas e calçadas
da Ribeira até à Foz
por pedras sujas e gastas
e lampiões tristes e sós.
E esse teu ar grave e sério
dum rosto e cantaria
que nos oculta o mistério
dessa luz bela e sombria
[refrão]
Ver-te assim abandonada
nesse timbre pardacento
nesse teu jeito fechado
de quem mói um sentimento
E é sempre a primeira vez
em cada regresso a casa
rever-te nessa altivez
de milhafre ferido na asa
Rui Veloso]]
Um bloco de granito pequeno. Ou um anjo barroco, exemplo dos dragões à entrada da Sé.
A canção Zap Canal dos Três Tristes Tigres [[Play on zap canal
Chuva na sala, cravo no quintal
Play back mau astral
A vaca d’oiro tem seu animal
Olho vivo, perna morta
Não dou mais salsa a quem bate à porta
Olho pisco perna torta
Dá-me um sono de alto risco e de sonhar estou farta e morta
Anos noventa bem medidos
Corpo em câmara lenta
Corações mais distraídos e…
E matéria mais cinzenta
Leve seja a terra
A quem não lavra, a quem não ferra
Dura seja a cama
De quem não perde, de quem não se dana
Glória a Deus Pai
Na baixeza, os fracos à sobremesa
Paz na terra Mãe…
A cabidela dos fortes digere-se muito bem
Anos noventa bem medidos
Corpo em câmara lenta
Corações mais distraídos e…
E matéria mais cinzenta
Guia Espiritual (1996) Ana Deus / Regina Guimarães / Alexandre Soares]]
Um poema, José Carretas, Roteiro do Grande Jogo da Glória de Miragaia.
O Rio guarda no fundo do rio
Histórias e memórias escondidas
Nas águas e as mágoas dessas vidas
Que ficaram a dormir no leito frio.
O rio, quando enche, inunda a margem
De segredos e de medos afogados
Nas mágoas e as águas dão a imagem
De paisagem naufragada aos bocados.
Por isso quando passo à beira-rio,
Eu arrepio e sinto o frio a flutuar
E desconfio que as memórias de meu rio,
Já transbordaram e passaram além-mar.
Um esqueleto.
Uma moeda de ouro.
Cartas de amor.
O kama-sutra!