A equipa de redacção Marianne Baillot & Rita Natálio [[Rita Natálio A sua actividade principal tem-se centrado na área da dramaturgia e escrita. Colaborou, com Vera Mantero, João Fiadeiro, Cláudia Dias, Guilherme Garrido, Pieter Ampe, António Pedro Lopes, Marianne Baillot e João Lima, entre outros. Desde 2008, começou igualmente a desenvolver o seu próprio trabalho de criação. Vive actualmente em São Paulo e realiza uma pós-graduação em Subjectividade na PUC –SP com Peter Pal Pelbart e Suely Rolnik. Marianne Baillot, vive entre Porto e Paris desde 3 anos, ela trabalha no cruzamento da dança, teatro, performance, intervenções pedagógicas e das pesquisas práticas (Ciências Humanas, Hipnose, Paisagens, Feldenkrais, Escrita)]] encontra-se no Clube Infante Dom Henrique, [[Ver Café e Poesia]] onde olham para o monte de folhas que acumularam nos últimos meses com as respostas às entrevistas do Mau Guia. A leitura romântica das respostas em lista não as satisfez completamente. Marianne pede um traçadinho. Rita, que é de Lisboa, pede um Porto tónico. Discutem no Muro dos Bacalhoeiros [[O Muro dos Bacalhoeiros (Ribeira, na continuação da Muralha Fernandina) : é um lugar perfeito para uma bebida ao final da tarde: Ver Mapa Pág.X]] vendo os barcos passarem no Douro.
Marianne: Ora, muitos entrevistados descreveram a essência do Porto comparando-o com Lisboa, sem nunca falar das cidades mais próximas ou sequer da região Norte! Depois, tu própria acabas de dizer que a nossa escolha de bebidas está ligada à nossa origem: tu de Lisboa, eu do Porto!!!
Rita: Mas porque é que tu achas que isso é um dado relevante? Uma cidade não precisa de viver de comparações para se definir. Eu acho que essa comparação baseia-se num mito sobre a cidade capital. Essa tua visão essencialista da cultura é despropositada para os tempos que vivemos, Marianne. Mesmo que os teus entrevistados tenham respondido assim, isso não é tão relevante…
Marianne: Eu sei que procurar a essência de uma coisa é uma missão impossível. Mas, eu adoro missões impossíveis…Além do mais, trata-se de olhar para o que dizem as pessoas!
Rita: Sim, mas as pessoas dizem muitas coisas…A verdade é que não há identidade que sobreviva, nem uma «essência» estável, quando «todos os aspetos da esfera pública estão a ser atacados, quando o setor público está a ser asfixiado, os serviços públicos privatizados, o espaço público fechado, a opinião pública controlada.» Que tipo de investigação podemos nós fazer sobre a identidade desta cidade quando ela se torna refém de uma realidade que ultrapassa claramente a vida das pessoas?
Marianne: Ai! Que discurso tão amargo! O Porto é uma cidade cheia de força, com uma identidade muito física!
Rita: Eu não estou a ser amarga. Estava apenas a questionar a tua vontade de definir uma essência.
Marianne: Não, não é isso. Eu sei bem que estou a falar de mitos: mitos de identidade, mitos de autenticidade. Por exemplo, nas respostas há um fascínio enorme com as pessoas «daqui». As pessoas «daqui» são descritas como se tivessem algo especial. São os chamados «tripeiros» [[Lenda dos Tripeiros (wikipédia): Os naturais do Porto são conhecidos, no resto do país, como “tripeiros“, designação que, segundo a lenda, se deve ao sacrifício que fizeram para apoiar a preparação da armada para a conquista de Ceuta, em 1415. Diz-se que ofereceram aos expedicionários toda a carne disponível, ficando apenas com as tripas, razão pela qual o prato tradicional da cidade ainda é, hoje em dia, as “tripas à moda do Porto”.]]
E olhando para a definição de «essencia» no dicionário, podemos concluir que o ingrediente mais importante, o elemento crucial é isso: as pessoas. Os tripeiros são descritos nas entrevistas como «uma gente impulsiva e criativa, por vezes incapazes de levar os seus planos avante».Um exemplo dado é a arquitetura da cidade: uma coleção de iniciativas e desejos individuais auto-organizada que resistiu a todas as tentativas de definição de um plano regulador de construção. A única sensação de unidade arquitetural que temos da cidade é a do Centro Histórico vista de Gaia. [[Um teleférico, daqueles que podemos encontrar em estações de ski, foi construido em Gaia para admirar esta vista! O teleférico de Gaia liga o cais da cidade, na zona localizada junto ao rio Douro em Vila Nova de Gaia ao Jardim do Morro, na parte alta, junto à Ponte Luis I, onde passa a linha amarela do Metro do Porto. Uma viagem de ida e volta custa 8€. Para quem quiser viajar num só sentido o custo é de 5€.]]
Rita: Desculpa, Marianne, mas discordo absolutamente da tua abordagem. Aliás, considero-a tão pouco científica. Vais ter que me ouvir agora, porque eu tenho uma surpresa para ti, também ligada ao corpo. Gostava de partilhar contigo e com os nossos leitores a minha mais recente investigação sobre canibalismo [[Segundo a wikipédia, o Canibalismo é um tipo de relação ecológica em que certas espécies de animais se alimentam de indivíduos da mesma espécie. Segundo alguns investigadores, essa prática terá resultado da evolução das espécies, com o objetivo de eliminar os indivíduos menos aptos, por exemplo provenientes de uma ninhada em que alguns filhotes saem dos ovos defeituosos ou imaturos.]] no Centro Histórico do Porto.
Marianne: Canibalismo???
Marianne e Rita continuam sentadas no Muro dos Bacalhoeiros. Já beberam cada uma três traçadinhos e três portos tónicos. A conversa começa a subir de tom, o sol está forte, estamos no meio do verão.
Rita: O Centro Histórico do Porto é conhecido como “PORTA DE ENTRADA PARA A REGIÃO DO VALE DO DOURO”, [[Versões populares para a origem do seu nome são várias. Uma delas diz que provém do celta dur (água). Outra diz que, nas encostas escarpadas, um rio banhava margens secas e inóspitas. Nele rolavam, noutros tempos, brilhantes pedrinhas que se descobriu serem de ouro. Daí o nome dado a este rio: Douro (de + ouro). Já outra versão diz que o nome do rio deriva do latim duris, ou seja, ‘duro’, atestando bem a dureza dos seus contornos tortuosos, e das paisagens que atravessa, nomeadamente as altas escarpas das Arribas do Douro, no trecho internacional do rio, entre Miranda do Douro e Barca d’Alva (Figueira de Castelo Rodrigo). A derivação por via popular do seu nome sugere romanticamente uma ligação a “Rio de Ouro (D’ouro)”, mas tal não tem aderência histórica. «Rio do Ouro» é também um filme de Paulo Rocha, nome maior do Cinema Novo Português, marcado por um conjunto de regressos felizes – de Paulo Rocha ao Douro, de Isabel Ruth aos filmes de Rocha, de Lima Duarte à terra dos seus antepassados – que caminham para um destino surreal e trágico. (wikipédia)]] marcada pelas multicores das suas multibandeiras europeias penduradas nos cruzeiros; pela abundância de gaivotas, trolleys rolantes, jovens artistas e designers fardados. No entanto, do meu ponto de vista é também “Porta de entrada para a região do Vale-tudo do Douro”.
Marianne: Vale-tudo?
Rita: Vale-tudo até tirar olhos, Marianne! E vou explicar-te porquê. O que se passa nesta zona é assunto para investigação dos humanos. Os humanos – depois de terem encontrado aqui mesmo um portal para a virtude numa massa cinzenta de informações – encontram-se hoje e agora fora da constelação do seu próprio corpo.
Marianne: O quê? De que é que estás a falar?
Rita: Digamos que saltaram um equinócio na sua consciência. Digamos que se abriu uma cratera no fundo das suas plantas dos pés e que já não andam. Estão enraízados no centro dos seus computadores onde se cruzam cabelo, cornucópias e estados indigestos da sua própria condição. O googlemap desta cidade tomou o lugar dos seus animais. As suas gaivotas são digitais. Os seus medos são perguntas a respostas sem pergunta. Os humanos estão em extinção. As gaivotas não. As gaivotas são turistas da cidade. São turistas de um amor que ama quando se encontra com a carne, amor próprio da contemplação dos bichos. Disse o Gustavo – um músico da Ribeira com cabelos e barbas muito compridas que conheci há uma semana – que a última vez que sentiu alguma coisa foi em 1980. E desde então as suas emoções ficaram congeladas na minha investigação.
Marianne: Mas isso é horrível!
Rita: Dou-te um exemplo. Existem 1976 edifícios no Centro Histórico do Porto. Desses 1976 edifícios, 1302 necessitam recuperação. [[ Estudo de Sandra Guinand, Valorisation du tissu bâti et procustion symbolique de l’espace – projectio et réception : le cas de Ribeira à Porto, Irest, paris I – Igul, UNIL, 2011]] Aqui temos para mim um princípio de canibalismo. Será que os edifícios se andaram a comer uns aos outros? Os indícios revelam forte probabilidade de práticas canibalistas na arquitetura. Fachadas inteiras desapareceram, tetos, edifícios inteiros parecem ter eclipsado como por magia. E tenho uma equipa inteira a averiguar se existem traços de sangue nas fachadas e nas ruínas.
Marianne: Estou a ver que andaste a investigar. Mas de certeza que existem exceções.
Rita: Sim…No Centro Histórico, parecem ter-se desenvolvido anticorpos às práticas antropofágicas e desenvolvem-se novas formas de vida para além da morte. No sítio onde prédios se extinguiram, plantaram-se flores e vegetais e há quem acredite que algo novo está prestes a acontecer por aí. Mas sabes uma coisa? O canibalismo acontece, é uma evidência. Não é algo negativo. Os humanos digerem-se. Mas não é por isso que estão em extinção. Na verdade o ato de deglutição de humanos é até uma prática fundamental para a sua subsistência. Diz-se aliás que durante muitos séculos, a preservação da raça humana em vários pontos do globo foi conseguida à custa de transfusões de sangue, sensibilidade e inteligência. Portanto, não podemos dizer que é o canibalismo que nos extingue. Mas sim, talvez a falta de fertilizantes, como sol, água e irrigação de todas as suas juntas elétricas e orgânicas. Ou uma razão maior para que a antropofagia nos una em vez de nos dividir : «Tupi or not Tupi» that is the question!
Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa. O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará. Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande. Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental.
Oswaldo de Andrade – Manifesto Antropófago, 1928
Marianne: Essa história de uma cidade novata que come a cidade velha parece-me um bocado fraca! Acho que já bebeste demais, não? Pela minha análise das entrevistas, o clima é uma caraterística fundamental da cidade do Porto, tema de muitas conversas e, acima de tudo, o verdadeiro designer de luz da cidade.
«Porto
Cidade de luz de granito
tristeza de luz viril
com punhos de grito.» José Gomes Ferreira
A variação rápida das condições luminosas, níveis de humidade (morrinha), e pressão atmosférica podem alterar completamente a perceção e a experiência da cidade. Não é inédito descobrir-se uma rua onde num lado chove e no outro faz sol. Alia a isso o facto das pessoas considerarem que o granito constitui o esqueleto da arquitetura do Porto. [[Por exemplo, a largura das casas antigas do Centro Histórico do Porto, foi determinada pelo comprimento máximo das vigas de madeira para poderem ser transportadas por barco (6,5m). Esta é a razão pela qual as casas foram construídas na vertical: adicionar um andar extra era a única forma de expandir a casa. Isto também explica as longas e estreitas varandas que rodeiam os prédios mais antigos. O último andar tinha sempre uma estrutura em torno do nível superior para suportar o telhado; assim, sempre que se adicionava um novo andar, esta estrutura era transformada numa varanda]]
Rita: Desculpa Marianne, mas vou ter que te voltar a interromper. Uma cidade é um conjunto de trocas canibalistas de modelos, ideias e práticas. Esse teu argumento de que não queres controlar o futuro mas sim o presente só me entusiasma. Vou apresentar-te mais provas sobre a minha investigação para que me possas entender de facto.
Apresento-te a Prova nº2:
É inegável, o comércio tradicional do Porto tem sido descrito como moribundo. Eu sei isso, tu sabes isso, sabemos todos. Mas repara neste outro facto: entre Junho de 2008 e Maio de 2011, novas lojas e boutiques, nomeadamente as que se destinam a visitantes proliferam por todo o Centro Histórico. Nomeadamente, a conhecida loja GALO DE BARCELOS. [[A lenda do Galo de Barcelos narra a intervenção milagrosa de um galo morto na prova da inocência de um homem erradamente acusado. Está associada ao cruzeiro seiscentista que faz parte do espólio do Museu Arqueológico, situado no Paço dos Condes de Barcelos. (wikipédia)]] Temos aqui quanto a mim, um forte segundo indício de canibalismo. Andarão os antigos comerciantes a ser devorados pelos novos comerciantes? Tenho uma equipa a averiguar se o processo tem sido doloroso. [[Idem, Estudo de Sandra Guinand]]
Apresento ainda a Prova nº 3:
É sabido por muitos que o Centro Histórico tem sido vítima de problemas sociais: a taxa de desemprego tem aumentado, a população é caraterizada por uma forte taxa de envelhecimento e vulnerabilidade, dependente de ajuda social ou mesmo toxicodependente. E enquanto isso, jovens alemães esbeltos e muito louros, apetrechados de máquinas fotográficas fotografam a essência que tu tanto queres defender, nos olhos tristes e cansados de uma senhora muito velha, coxa e vestida de negro. Temos então aqui para mim o mais forte indício da investigação. As rugas de expressão de jovens e velhos do centro, o andar cansado e pesado desses seres históricos, parecem ter sido ganhos à custa de uma violenta sucção vital. Pergunto-te, perguntamo-nos, terão sido esses visitantes? Esses turistas? Ou terão sido as gaivotas? A globalização? Nós mesmos? É um caso para pensar…
Marianne: O que é para ti um « turista »?
Rita: Um turista é…
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